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Entrevista ao Expresso, por José Mário Silva

Ricardo Fonseca Mota na Revista E do jornal Expresso, entrevista por José Mário Silva - 13/08/16

Escrever de ouvido

Psicólogo clínico, Ricardo Fonseca Mota trabalha com o lado menos visível das pessoas e faz dele a base para o seu romance de estreia, vencedor do Prémio Agustina.

Texto José Mário Silva


E se as pessoas que se cruzam na rua todos os dias, cada uma fechada na sua solidão, tiverem grandes histórias para contar, desconhecidas apenas e só porque nunca ninguém esteve disposto a ouvi-las? É este o ponto de partida de “Fredo”, romance de estreia de Ricardo Fonseca Mota, com o qual venceu, em 2015, o Prémio Literário Agustina Bessa-Luís. O livro, acabadinho de chegar às livrarias, editado pela Gradiva, narra o encontro improvável entre um jovem de 19 anos, recém-chegado a Lisboa, cheio de aspirações artísticas (quer ser escritor, trabalhar num teatro), e um octogenário que gosta de jogar xadrez. Diante do tabuleiro, os dois aproximam-se, dialogam, vão-se conhecendo e revelando. Adolfo Maria, o rapaz meio perdido na grande cidade, adia os sonhos, enquanto trabalha numa agência funerária. Já Fredo, o velhote misterioso acaba por desemaranhar os fios da sua vida extraordinária, marcada pela perseguição aos judeus na II Guerra Mundial e pela vinda, na condição de refugiado, para este extremo da Europa – carregando, sem o saber, um segredo que vira a sua identidade do avesso (e que só descobrimos nas páginas finais).


A ideia central do romance começou a germinar em 2012, quando Ricardo soube da morte do grande poeta holandês Gerrit Komrij, que viveu desde os anos 80 em Vila Pouca da Beira, no concelho de Oliveira do Hospital. «Eu cresci e fiz-me gente em Tábua, que fica a poucos quilómetros de Vila Pouca da Beira. Ou seja, fui quase vizinho de um escritor importante. Tinha livros dele e tudo. Se calhar até me cruzei com ele, sem fazer ideia de quem era.” A constatação teve o efeito de uma bomba: «Pensei: quantas mais pessoas destas estão à minha volta e eu não sei que estão? Quer dizer, elas existem, eu é que nunca as vi.» Nascia assim na sua cabeça, gradualmente, o esboço do que viria a ser a história de “Fredo”, relato da aproximação entre duas pessoas que saltam por cima de um abismo (a diferença de idades, um conjunto de experiências que não podiam ser mais díspares) para se compreenderem e resgatarem mutuamente. Antes, surgira o interesse pelo papel dos portugueses na II Guerra Mundial. Num artigo de Esther Mucznick, Ricardo descobre a figura de Teixeira Branquinho, diplomata português que foi encarregado de negócios em Budapeste, no ano de 1944, sucedendo ao embaixador Sampaio Garrido, ainda a tempo de salvar cerca de mil judeus. «Para mim, a história deste homem representou um clique. Apercebi-me de que havia mais heróis, além de Aristides Sousa Mendes e Sampaio Garrido, ambos reconhecidos como ‘Justos entre as Nações’, honra que não concedida a Teixeira Branquinho.» Este facto levou-o a querer saber mais, a investigar, a recolher informações que são alicerces da parte histórica do romance. «Na verdade, interessam-me os heróis que não foram cantados, os amores sem testemunho as mortes solitárias. O lado menos observado da realidade. Acho que a literatura deve tentar salvar isso: as histórias dos esquecidos.»


A pesquisa para o livro foi iniciada em 2011, quando Ricardo Fonseca Mota estava no último ano do curso de Psicologia, em Coimbra. Para trás, ficaram muitas tentativas de encontrar um rumo. «Comecei por estudar Design, mas depois percebi que não queria perceber de coisas, de objectos, mas sim de pessoas.» Ao mesmo tempo, descobriu o prazer de «comunicar, comunicar, comunicar». Fez programas na rádio universitária e criou com colegas um grupo de expressão dramática (o InterDito, ainda em atividade). Para suprir a falta de dinâmica cultural na cidade dos estudantes, juntou-se a «malta de letras e arquitetura» num coletivo de artistas, o Salão 40, que todos os meses acolhia exposições, performances, concertos. «Andava à procura. A experimentar.» e ia escrevendo textos. A literatura a sério, porém, só começaria com “Fredo”. Antes disso, os poemas juvenis do costume, mas nem sequer um conto para amostra.


Concluído o curso, e não havendo perspetivas profissionais no horizonte, Ricardo seguiu um caminho semelhante a muitos outros jovens: a emigração. Ou a tentativa de emigração. Na Irlanda, arredores de Dublin, procurou trabalho mas não o encontrou. Estava longe, isolado, e decidiu começar a escrever. «Foi um processo lento. Teve início em 2012 mas só com concluí em 2014, com 26 anos.» E porquê um romance? «Às tantas deixei de ter a necessidade de escrever, para ter a necessidade de contar. Parece a mesma coisa, mas não é. Queria, e quero, contar histórias.» Fora dos circuitos literários, sem amigos a quem pedir conselhos a sua formação foi a de um autodidata solitário. «Costumo dizer que aprendi a escrever de ouvido, como se aprende a tocar de ouvido.» Ou seja, lendo o que os outros escreveram antes dele. E assumindo um lado metódico. «Impunha-me metas de leitura. Às vezes, deixava passar uma refeição na cantina para comprar um livro no alfarrabista. E tinha sempre um dicionário na mesa de cabeceira, para ir adicionando palavras ao meu vocabulário.»


«A literatura deve tentar salvar as histórias dos esquecidos»

Quando terminou o romance não lhe passou pela cabeça enviar o original para uma editora. Temia que o livro estivesse muito verde e que, depois de corrigido, já não o quisessem publicar. «Preferi pô-lo à prova, sem qualquer expectativa. E por isso enviei-o para o Prémio Agustina. «No final de 2015, quando estava novamente emigrado, em Inglaterra, chegou a boa nova. Mas a alegria não o transtornou. Nem fez com que deixasse de ter os pés na terra. «Este é um livro que reflete a minha evolução, a minha aprendizagem. Começa titubeante, mas depois vais melhorando. Tenho consciência disso. Avancei por tentativa erro.»


Agora, aos 29 anos, já com o segundo romance em curso, sente que cresceu como escritor. «Sou uma pessoa diferente. Vi mais coisas, li mais, vivi mais.» Algo, porém, não se alterou: o interesse pelas pessoas. A sua atividade como psicólogo clínico, especializado no trabalho com família e casais, é essencial. «A experiência de psicólogo ajuda-me a dar densidade às personagens, porque ao criar uma personagem tenho de colocar-me no lugar do outro. E isso é algo que faço todos os dias no consultório.»



ricardo fonseca mota_@gi da conceição_20

.Vencedor do Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís 2015

.Semifinalista do Oceanos - Prémio de Literatura em Língua Portuguesa 2017

.Semifinalista do Oceanos - Prémio de Literatura em Língua Portuguesa 2021

.Vencedor do Prémio Ciranda 2021

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